João Fecchio

Tatuador & Artista visual

Studio Privado — Madrid, Espanha

Explorando a arte através da (in)permanência de corpos

Every wound is a prayer

Mil Desertos

Quando alguém diz que é do Brasil, uma imagem surge de imediato: música escorrendo pelas ruas cheias, uma cultura vibrante e colorida de festas, risadas e praias povoadas por corpos dourados pelo sol.

Eu não venho desse Brasil.

Nasci em Rondônia, um estado no extremo oeste do país, onde até os mapas começam a se perder e a terra é mais esquecida do que celebrada. Minha cidade natal é Rolim de Moura, um lugar pequeno com pouco mais de quarenta mil almas. Na verdade, até isso é ficção: Rolim não tinha maternidade quando nasci em 2001, e minha mãe precisou viajar até a cidade vizinha para que eu viesse ao mundo. Tecnicamente, então, consta na minha certidão de nascimento o nome de uma cidade à qual nunca pertenci de verdade. Meu lar sempre foi Rolim de Moura.

A infância em cidade pequena é ao mesmo tempo uma bênção e uma limitação. Tinha tão pouco, mas ainda assim tinha tudo. Lembro de brincar até o anoitecer com as crianças da vizinhança, pedalar em ruas de terra, empinar pipas em céus que pareciam grandes demais e passar horas cavando buracos nas estradas de terra, como se fosse possível abrir passagem para outro mundo. Eu também desenhava sem parar — mas toda criança desenha.

Talvez a única diferença entre o artista e o resto do mundo seja que o artista é apenas a criança que se recusou a parar.

Aos sete anos, meus pais se mudaram para Porto Velho, capital de Rondônia. Não era uma metrópole, pelo menos em comparação com as grandes cidades do mundo, mas para mim foi um excesso de gente, ruas e barulho. A transição não foi gentil: se antes meus amigos corriam atrás de sapos ou pedalavam até as pernas não aguentarem mais, as crianças da cidade pareciam indiferentes a tudo isso. Meus passatempos inocentes já não tinham lugar ali. Ao mesmo tempo, o casamento dos meus pais ruiu, e o divórcio introduziu em minha vida a primeira fratura clara da família. Essa combinação me deixou como o “moleque esquisito da turma”: o calado, o que não se encaixava em lugar nenhum, existindo nas margens até entre seus próprios colegas.

Foi nessa época, no fim dos anos 2000, que a internet começou a crescer, e eu me encantei com a ideia de fazer vídeos por diversão. Nunca tive sucesso com o conteúdo em si, mas mergulhei na edição, na arte digital e, especialmente, no Photoshop, que logo se tornou mais do que uma ferramenta. Eu me pegava “pensando Photoshop”: visualizando a interface dentro da minha cabeça e editando imagens mentalmente. Era como uma extensão do meu corpo, um membro fantasma que agia com a mesma autonomia das mãos.

Na adolescência, arrumei até um bico como designer gráfico. Mas a suposta glória de “trabalhar com arte” logo se revelou uma ilusão. Criar design é, na maioria das vezes, servir aos caprichos alheios, e deformar sua visão até que caiba no gosto de um cliente — mesmo que seja feio, mesmo que carecesse de alma. Eu me tornava o artesão de demandas, fabricando logotipos genéricos para restaurantes e miudezas comerciais, ansiando por liberdade enquanto estava acorrentado à utilidade.

Ao terminar o ensino médio, saí de casa pela primeira vez e fui para Curitiba, no sul, cursar design gráfico. Era o mais longe que já havia estado de Rondônia. Mas seis meses depois, começou a pandemia, e o mundo inteiro entrou em isolamento. Sozinho naquela cidade distante, privado de conexão humana, senti de novo o que Rondônia sempre havia me sussurrado: a sensação de estar em um limbo, aguardando numa sala de espera para algo que nunca chegava.

Na verdade, Rondônia é o próprio limbo. Geograficamente, fica entre dois grandes ecossistemas: a Floresta Amazônica e o Cerrado; mas não pertence inteiramente a nenhum deles. Culturalmente, é um lugar sem rosto definido, sem um mito que una seu povo. Somos filhos de imigrantes vindos de todos os cantos e de canto nenhum, abandonados nessa terra intermediária e herdeiros de sua vagueza liminal. Nascemos já à deriva, como se a própria terra não soubesse o que fazer de nós.

Depois de seis meses em Curitiba, cansado da solidão e desiludido com o curso, abandonei a cidade e voltei a Porto Velho. Retornei sem planos, sem carreira, sem propósito claro. E assim, quase por acaso, comecei a tatuar. Meu pai me ajudou a comprar uma máquina barata pela internet, e eu treinei em pele sintética, depois nas minhas próprias pernas, depois em amigos. Antes que eu percebesse, já era aprendiz no estúdio de tatuagem mais próximo de casa.

Mas tatuar revelou a mesma verdade que o design: por mais que eu quisesse criar a partir da alma, no fim quem decidia era o cliente. Passei meses tatuando finelines copiados do pinterest apenas para pagar as contas. Não era diferente de fabricar logotipos de restaurante. As ferramentas mudaram, mas as correntes eram as mesmas.

Ser artista em Rondônia era como cultivar um campo com esperança, cuidar da terra dia após dia, para perceber que o próprio solo era infértil. Poderia-se trabalhar sem fim e jamais colher frutos.

Essa verdade se cristalizou quando visitei São Paulo, talvez o coração da vida cultural do Brasil (ao menos hoje em dia). Ali encontrei tatuadores vivendo como eu sonhava: escolhendo seu trabalho, entregando-se apenas ao que amavam e sendo recompensados por isso. Eles colhiam o que eu havia rezado para cultivar, mas que minha terra nunca me deu. Conhecê-los plantou em mim a semente de deixar Rondônia para trás.

Mas, enquanto eu preparava minha fuga, algo diferente começou a se mover em mim: um chamado mais silencioso que a ambição, mais estranho que o desejo, mais misterioso que qualquer plano. Embora eu não tivesse sido criado em um lar religioso de forma alguma, fui sendo tomado, pouco a pouco, por uma atração irresistível pelo catolicismo.

Não houve revelação repentina, epifania explosiva nem conversão dramática. Foi como a maré que sobe devagar: silenciosa, mas incontornável. Com o tempo, escolhi entrar na igreja local, não por tradição ou algo do tipo, mas como ato de entrega, de me colocar diante de algo infinitamente maior do que eu.

Inevitavelmente, minha fé começou a influenciar minha arte. Passei a estudar imagens sagradas, ícones bizantinos e simbolismo cristão. Pela primeira vez, senti meu trabalho dialogar com uma linguagem mais antiga que eu, e através dos símbolos, pude ir além do visível e tocar o transcendente.

Curiosamente, isso me afastou dos amigos tatuadores. Eles cabiam na imagem de rebeldia, contracultura ou niilismo que tantas vezes acompanha a tatuagem; eu carregava isso mas sob uma ótica apologética abraâmica. Só isso já bastava para ser ostracizado, novamente às margens. Uma união viva de dois opostos, uma concatenação de uma dicotomia — como se até a própria contradição exigisse ser acorrentada.

Com o tempo, meu destino não foi São Paulo, mas Madrid. Minha mãe, que já estava na Espanha, havia conquistado a cidadania pouco antes de eu planejar sair de Rondônia, e por meio dela encontrei um caminho para entrar na Europa. Deixei o Brasil, não com amargura, mas com a certeza silenciosa de que já havia esgotado o solo da minha terra natal.

Hoje vivo em Madrid. Aqui, finalmente, tatuo apenas o que realmente importa para mim. Meu trabalho consiste de tatuagens inspiradas por imagens sagradas num blackwork que revela mistério e silêncio. Neste lugar, longe de onde comecei, continuo a buscar, não por reconhecimento nem glória, mas de uma forma de aproximar minha arte do eterno, da verdade que sei estar além de mim.

Chegar aqui no exato momento em que meu coração se voltava para acima não parece acaso. A Europa, com todas as suas contradições, é inegavelmente cristã em seus ossos. As igrejas que se erguem sobre cada cidade, o sangue dos mártires que outrora lavava essas ruas de pedra, as relíquias que repousam em silêncio sob altares… Não são acidentes da história, mas lembranças de um continente que um dia colocou o sagrado no centro da existência.

Encontrar-me aqui, logo após o início da minha nova caminhada, soa menos como coincidência e mais como uma espécie de arranjo divino. Mas sei que não cabe a mim imaginar que esta terra dará frutos. Ser peregrino é aceitar a incerteza: que talvez eu trabalhe aqui e nada floresça, que talvez eu permaneça estrangeiro até o fim. Minha tarefa não é exigir que o solo seja fértil, mas continuar andando, continuar criando, continuar oferecendo o que posso com humildade e deixar que a vontade d’Ele se faça.

Já não pertenço totalmente ao Brasil, e jamais serei inteiramente da Europa. Talvez eu nunca pertença a nenhuma terra. Sou tatuador que não cabe bem na tribo dos tatuadores, cristão em uma era secular, imigrante em terra estrangeira. Mas a peregrinação não é sobre pertencer. É sobre seguir adiante, um passo de cada vez, carregando o peso do exílio e confiando na estrada que se coloca diante de mim.

Se minha vida for uma sucessão de limbos e desertos, que cada um seja mais uma estação dessa longa peregrinação, onde minha arte e meu trabalho, por mais pequenos e imperfeitos, possam servir como um sacrifício digno, como oferta, de gesto em direção ao eterno que sozinho pode saciar.